Thiago De Mello – Estatutos Do Homem & Poemas Inéditos (1989)

Enfim chegou a sexta-feira! Mais uma vez vai ser ela o dia do artista/disco independente. Escolhi a dedo o disquinho para hoje, com todo o carinho para os amigos cultos e ocultos. O dia já está quase no fim, mas a intenção e a postagem permanecerão eternamente enquanto durarmos.

Hoje eu quero poesia, daquelas que atinge a sensibilidade e percepção de qualquer um. Coisa bonita de se ouvir. Que emociona até um coração de pedra. Foi por isso que escolhi um poeta dos meus favoritos, o grande Thiago de Mello. Sua poesia é direta, definida, feita para ser lida e cantada, assim como fez Drummond, Vinícius e como faz Paulo César Pinheiro. Não se trata de comparações, são apenas alguns dos meus poetas mais queridos, daqueles que nunca me canso de ouvir. Tenho certeza que muitos aqui compartilham do meu gosto e é mesmo para esses que eu trago este lp. Lançado no final dos anos 80, o disco do poeta reúne poemas, até então inédito, juntamente com um dos seus mais famosos, “Estatutos do Homem”, escrito em 1964, no Chile, quando foi adido cultural da embaixada brasileira naquele país. Tornou-se logo uma das mais consagradas poesias brasileiras, sendo conhecida e divulgada em vários países. No presente álbum podemos ter o prazer de ouví-las declamadas pelo seu autor, tendo ao lado a companhia de seu filho, o também poeta e músico, o saudoso Manduka. É dele a trilha sonora musical que embeleza ainda mais os “Estatutos do Homem & Poemas Inéditos”. Eis aí um disco para fechar com chave de ouro a semana. Confiram…
os estatutos do homem
a vida verdadeira
para repartir com todos
é natural mas fede
andirá – cantiga de caboclo
o silêncio da floresta
amazonas, pátria da água
tercetos de amor
linda vida
feliz insuportavelmente
num campo de margaridas
ontem sonhei com três rinocerontes
cantiga de natal quase de roda
***
Estatuto do Homem

Artigo I
Fica decretado que agora vale a verdade.
agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único:
O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino.

Artigo V
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

Artigo VI
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha
sempre o quente sabor da ternura.

Artigo X
Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida,
uso do traje branco.

Artigo XI
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII
Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido,
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.

Artigo XIII
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

Artigo Final.
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.