A Música De Cartola – Seleção 78 RPM Do Toque Musical – Vol. 68 (2013)

Em sua sexagésima-oitava edição, o Grand Record Brazil nos brinda com as primeiras composições gravadas de um grande nome do samba e da MPB. Estamos falando de Cartola. Angenor de Oliveira – que só por ocasião de seu casamento com Zica (Euzébia Silva do Nascimento) descobriria que seu pré-nome era Angenor e não Agenor, como vinha assinando – nasceu em 11 de outubro de 1908, na Rua Ferreira Viana n.o 9, no bairro do Catete, Rio de Janeiro. Era o primeiro dos oito filhos do primeiro casamento de Sebastião, com Aída. Aos oito anos, foi morar na Rua das Laranjeiras e teve despertado seu interesse pela música no contato com ranchos e clubes de operários e, ora, pois, pois, portugueses. Quando ele tinha 11 anos, a situação da família piorou, fazendo com que se mudasse para o morro da Mangueira, então ainda com características rurais e pouquíssimo habitado. Aí conhece Carlos Cachaça (1902-1999), marcando o início de uma estreita e duradoura amizade, inclusive na música, sendo parceiros de grandes sambas. O primeiro emprego de Cartola, primeiro de muitos trabalhos humildes, foi numa modesta tipografia. Na profissão de pedreiro, ele passou a usar um chapéu-coco a fim de proteger o cabelo do reboco, daí nascendo o pseudônimo com que ficou para a posteridade. Com apenas 18 anos, amasia-se com Deolinda (que era casada, tinha uma filha e era sete anos mais velha que ele!). Integrado na roda dos batuqueiros, integra a formação, anos depois, do Bloco dos Arengueiros, cujo maior prazer entre seus componentes era promover arruaças, fazendo jus ao nome. Um dia, porém, seus componentes concluem ser chegada a hora de acalmar os nervos, sem perder a finalidade musical. Assim nasceu, em 1928, a lendária Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, cujas cores, verde e rosa, foram adotadas por sugestão do próprio Cartola (eram as mesmas cores do Rancho dos Arrepiados, por ele frequentado no tempo em que morara na cidade).  Entre 1929 e 1933 teve suas primeiras oito composições gravadas, cinco por Francisco Alves , o maior cantor da época, uma por Cármen Miranda, uma por Sílvio Caldas e uma pelo iniciante Arnaldo Amaral. Essa primeira fase de músicas gravadas seria interrompida, pois os rendimentos eram parcos, e Cartola dedicou-se apenas a compor para sua querida Mangueira, da qual se tornou figura lendária, lançando esporadicamente em disco um ou outro samba, inclusive gravando para o maestro Leopold Stokowski, em 1940, o samba “Quem me vê sorrir” (ou “Quem me vê sorrindo”), parceria com Carlos Cachaça, registro que na época só saiu nos EUA.  Nos anos  40, teve inúmeras dificuldades, tanto financeiras quanto pessoais, abalado pelo falecimento de sua Deolinda e gravemente doente. Nessa ocasião, Cartola se afasta da Mangueira e chega até a ser dado como morto. Em meados da década de 1950, o jornalista e escritor Sérgio Porto o redescobre na penúria, como lavador de carros numa garagem de Ipanema. Sérgio anuncia a boa nova de que Cartola ainda vivia, e lhe arranja um emprego menos árduo. Aos poucos, o mestre mangueirense começa sua reintegração ao meio musical. É quando se casa com sua querida Dona Zica, bela cabrochinha de olhos brilhantes, e também exímia e celebrada cozinheira. Ambos instalam, num antigo casarão da Rua da Carioca, o lendário restaurante Zicartola, que funcionou de 1963 a 1965, tornando-se ponto de encontro de sambistas de morro com nomes ditos elitizados , dando também oportunidade para o surgimentos de novos valores, Cartola comandando o samba e Dona Zica o “rango”. Entre suas composições mais conhecidas destacam-se “O sol nascerá”, “As rosas não falam”, “Acontece”, “O mundo é um moinho”, “Sim” e “Alvorada”. Entre 1974 e 1978, Cartola grava quatro LPs, dois pela Marcus Pereira e outros dois pela RCA, bastante elogiados pela crítica e bem acolhidos pelo público. Cercado do respeito e reconhecimento gerais, faleceu em 30 de novembro de 1980, aos 72 anos, sendo seu corpo velado na sede da Mangueira com todas as homenagens, e sepultado no cemitério do Caju.

Para esta edição do Grand Record Brazil, foram selecionadas nove faixas, gravadas em 78 rpm.  Abrindo esta seleção, temos a primeira composição gravada de Cartola, “Que infeliz sorte!”, lançada pela Odeon em dezembro de 1929, na voz de Francisco Alves, disco 10519-A, matriz 3095. Mário Reis chegou a adquirir os direitos de gravação deste samba por 300 mil-réis, mas preferiu repassá-lo ao Rei da Voz. Em seguida, Cármen Miranda, já então “o maior nome feminino da fonografia nacional”, interpreta “Tenho um novo amor” gravação Victor de 11 de maio de 1932, lançada em julho seguinte sob n.o 33575-B, matriz 65486, com acompanhamento do mestre Pixinguinha, à frente do Grupo da Guarda Velha.  É uma parceria de Cartola com Noel Rosa, não creditado no selo e na edição. Vem também a ser o caso das faixas seguintes, interpretadas por Francisco Alves e por ele gravadas na Odeon: “Não faz, amor”, gravação de 7 de julho de 1932, disco 10927-A, matriz 4481, e “Qual foi o mal que eu te fiz?”, imortalizado pelo Rei da Voz em 30 de dezembro de 32 mas só lançado em maio de 1933 sob n.o 10995-B, matriz 4574. Noel e Cartola, sem dinheiro, procuraram Chico Alves no Largo do Maracanã e lhe pediram algum. Chico concordou, desde que cada um fizesse um samba naquele momento. Foi aí que compuseram “Qual foi o mal que eu te fiz?”, com toda a segunda parte de Noel, que nessa ocasião fez sozinho “Estamos esperando”, gravado por Chico em dupla com Mário Reis. No dia 3 de janeiro de 1933, Francisco Alves retorna aos estúdios da Odeon para gravar outro samba de Cartola, agora sem parceiro: “Divina dama”, que será lançado logo em seguida com o número 10977-B, matriz 4575, constituindo-se no maior sucesso da primeira fase de composições gravadas do poeta mangueirense.  A faixa seguinte, “Na floresta”, foi gravação de Sílvio Caldas, parceiro de Cartola neste samba, em  13 de julho de 1932, matriz 65546, mas a Victor só o lançou em outubro de 33 com o n.o 33712-A. Isso em virtude de atritos entre Sílvio e Francisco Alves. Bucy Moreira compôs um samba chamado ‘Foi um sonho”, do qual Chico Alves gostava da letra, mas não da melodia. Então o Rei da Voz encaixou a de “Na floresta”, deixando a letra de lado. Os versos seriam musicados e gravados por Sílvio Caldas, e Francisco Alves, evidentemente, surtou e quis impedir o lançamento do disco. Mas Sílvio Caldas convenceu o Rei da Voz de que ele tinha comprado apenas a melodia: “Você deixou a letra de lado e o Cartola precisa ganhar dinheiro!” E Chico deixou os atritos também de lado…  A faixa seguinte é “Não posso viver sem ela”, parceria de Cartola com Alcebíades “Bide” Barcelos, gravada na Odeon por Ataulfo Alves, à frente de sua Academia de Samba, em 27 de novembro de 1941, com lançamento bem em cima do carnaval de 42, fevereiro, sob n.o 12106-B, matriz 6870. Entretanto, o hit maior desse disco foi o clássico “Ai, que saudades da Amélia”, de Ataulfo e Mário Lago, que ofuscou esta aqui. O samba-canção “Grande Deus” foi composto por Cartola em 1946, quando contraiu meningite e demorou mais de um ano para se recuperar. Porém, só em agosto de 1958 é que a música foi lançada em disco, na voz do grande Jamelão, pela Continental, sob n.o 17573-A, matriz C-4099. E, para encerrar mais este pequeno-grande programa do GRB, o samba “Festa da Penha”, parceria de Cartola com Asobert (pseudônimo e anagrama de Adalberto Alves de Souza). Foi gravado em 1958 por Ary Cordovil para o extinto selo Vila, em disco de número 10003-A, matriz V-7801-A. A festa em questão acontecia todo ano no mês de outubro, com romaria de fiéis  percorrendo o longo caminho até a igreja (com escadaria e tudo), que até hoje fica bem em cima do morro da Penha, numa demonstração de fé e oportunidade para apresentação de novas músicas, sempre com um olho profano em direção ao carnaval. Esta é a homenagem do GRB ao mestre Cartola, nome que tem seu lugar garantido entre os imortais de nossa música popular.

* Texto de SAMUEL MACHADO FILHO

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